quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Terminou!

foto de Núbia Abe
O II Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha acabou e nos deixou várias reflexões. A principal delas é o fato de não podermos deixar morrer iniciativas como esta de tanta importância para o desenvolvimento cultural de um povo. 

Espetáculos das mais variadas temáticas e estéticas formaram uma programação de altíssimo nível, composta pela excelente curadoria dos espetáculos nacionais, realizada por Márcio Abreu, Álvaro Assad e Valmor Beltrame, além da Mostra Local, formada pelo consistente movimento teatral itajaiense. 

O papel dos críticos Luciano Maza e Humberto Giancristofaro foi de fundamental importância para estabelecer um diálogo mais frutífero com os grupos e provocar uma reflexão na platéia. 

Por fim, não podemos deixar de citar toda a equipe envolvida na organização do evento, desde os funcionários do Teatro Municipal e da Fundação Cultural de Itajaí, até os jovens e receptivos monitores que criaram um clima de grande profissionalismo e leveza para que o evento sucedesse. E aos nossos parceiros e patrocinadores, sem os quais, nada seria possível. 

Resta-nos por fim, acrescentar: Vida longa ao Festival Toni Cunha!!! 

Denise da Luz 
Coordenadora Geral

Crítica: Sonhos de um palhaço (por Humberto Giancristofaro)

foto de Núbia Abe
Crítica do espetáculo Circo do só êu, de Ésio Magalhães
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicada no site Questão de Crítica 
O espetáculo foi assistido no II Festival de Teatro de Itajaí, SC

Quando todos os espectadores já estão em seus lugares, um palhaço grita efusivamente da plateia que está ansioso por assistir ao espetáculo que, por sinal, já deveria ter começado. Depois da frustrante informação de que o circo desistiu de vir se apresentar, pois aceitou uma oferta maior de outro produtor, Zabobrim, inconformado, aceita entreter o público. Este é o prólogo do espetáculo Circo do só êu, escrito, dirigido e encenado por Ésio Magalhães.

foto de Núbia Abe
Uma produção do Barracão Teatro de Campinas, este espetáculo faz parte do longo trabalho como palhaço de Ésio, que se apresenta para seu respeitável público no II Festival de Teatro de Itajaí com essa paródia do Cirque Du Soleil.

A apresentação acontece em um palco italiano, mas para conseguir ampliar a interatividade necessária ao seu espetáculo, Zabobrim começa por “armar sua barraca”, como diz, envolvendo toda a plateia com uma fita larga, agregando-a em seu espaço cênico. Esse primeiro artifício descaracteriza de imediato a rigidez de uma sala de teatro/auditório e é o momento que o ator tem para reconhecer seu público e iniciar uma relação franca e direta com ele. Aos poucos o ator vai somando uma série de tiques que se repetem ao longo da peça, construindo um personagem coerente. Por mais que excessivamente caricatos em alguns momentos, os trejeitos do palhaço ganham a plateia nos dez minutos iniciais, antes mesmo de seu primeiro número. Essa agilidade com a pilhéria vem de um artifício praticado pelo palhaço que se diferencia do principal caminho da comédia costumeira: ele não é partidário do escárnio.

A tradição do fazer rir, desde a conceituação de Aristóteles que identifica como diferencial humano o fato dele ser o único dentre os animais que possui a habilidade de rir, carrega a teoria fundamental de que toda a animação causada pela zombaria é fruto de uma insinuação de desprezo. Thomas Hobbes já havia assinalado que a função social do riso é reconhecer o diferente e apontá-lo como ridículo até o constrangimento, a fim de educar e corrigir essa disparidade, reinserindo-o novamente na normalidade social regida pelo identitário. Ésio Magalhães explora um lado nada moralizante da comédia, conseguindo produzir uma sensação menos apreensiva da plateia – ela não teme ser ridicularizada pelo palhaço. Essa outra visão do cômico, tal como Henri Bergson define em seu livro O riso, também tem um caráter educativo, contudo, com o efeito de expor a distinção entre o que é vivo (criativo) e o que é simples automatismo na constituição da sociedade. Ressaltando isso, ele espera que o indivíduo fique livre para investir naquilo que aumente sua potência de agir, de criar, de investir em seus sonhos. Para Bergson a identificação da natureza da absurdidade cômica é como aquela presente nos sonhos. Ou seja, se faz com base na distinção entre a lógica da realidade, à qual corresponde o esforço espiritual que ele denominava “bom senso”, e a lógica da imaginação. O esforço do bom senso é de regular, adaptar e modificar os pensamentos de acordo com os objetos que encontra na realidade. Na lógica da imaginação ocorre o inverso: não é o pensamento que busca se adaptar à realidade, mas é esta que é forçada a se moldar segundo aquele. É o que acontece no número de Zabobrim com sua piolha Jupiara que pensa ser uma pulga e quer demonstrar um salto ornamental. Ninguém pode enxergá-la, assim todas as imagens construídas são imaginárias e provenientes do imaginário daquele palhaço. Ou seja, onde ninguém enxerga nada, um indivíduo enxerga um número espetacular. Eis o absurdo cômico que segue a mesma lógica dos sonhos.

foto de Núbia Abe
Outro elemento explorado nesse circo, que depende da reação rápida do ator diante das interações, é a composição de caricaturas. Elemento seminal do humor, a caricatura não se resume ao exagero aleatório. Ésio constrói caricaturas com base nas reações do público, alargando o potencial dessa troca. A análise da caricatura, tal como é proposta por ele, passa por uma consideração do que é uma fisionomia cômica (entenda-se, de toda expressividade cômica). Para caracterizá-la, podemos voltar, ainda com Bergson, à oposição entre a vida e o automatismo. O filósofo diz ser a fisionomia cômica uma ideia de ações simples e mecânicas. Dado que nenhuma fisionomia (ou ação) é perfeitamente harmônica, qualquer rosto guarda o esboço, a insinuação de uma possível deformação. O bom caricaturista percebe essa “revolta da matéria” por sob as “harmonias superficiais da forma”. O palhaço não inventa nada, apenas continua um movimento natural. A caricatura pode ser vista como a arte do realce de esboços desarmônicos prefigurados na natureza fisionômica. O exagero não é um fim, mas sim um meio de indicar as deformações.

Por fim, a premissa de comicidade vai sendo alcançada quanto mais se imprime o automatismo, a mecanicidade, a rigidez à manifestação de espontaneidade do comportamento humano. Essa é uma leitura possível para entender porque os repetidos tombos ficam cada vez mais engraçados à medida que são repetidos; até que numa outra tentativa o palhaço não cai e olha para plateia como quem diz: “peguei vocês, acharam que eu ia cair de novo, né?” Assim, ele põe às claras o dispositivo simples que tem sua graça por expor um lado mecânico do homem, como se algo vivo pudesse ser produzido industrialmente.

Crítica: Estética da impotência (por Humberto Giancristofaro)

foto de Núbia Abe
Crítica da peça É só uma formalidade, do grupo mineiro Quatroloscinco – Teatro do Comum 
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicada no site Questão de Crítica 

Estamos cansados do homem, nós sofremos do homem.
Nietzsche

Após a reviravolta que sacou a humanidade da Idade das Trevas, o Renascimento formulou uma nova concepção do mundo, sob a qual, aos poucos, a sociedade europeia e suas descendentes foram se estruturando. Logo o Humanismo trouxe a figura do indivíduo e a ideia de uma razão que determina e referencia qualquer realização. O Racionalismo apossou-se do trono divino, vago na modernidade. O homem e seus costumes foram dissecados. Com esses estudos, manuais enciclopédicos puderam ser forjados para auxiliar o caminhar da sociedade. Não obstante, a referência a esse humanismo se tornou compulsória e o comportamento do homem se estruturou como uma fórmula demasiado humana. O grupo Quatroloscinco, procurando desconstruir esse protocolo, levou à cena É só uma formalidade.

Duas histórias paralelas compõem a dramaturgia dessa peça. A primeira, fruto das pesquisas de dramaturgia latino-americana, é baseada no texto Só os babacas morrem de amor, do escritor argentino César Brie, e trata do filho pródigo (Marcos Coletta) que retorna para o enterro do pai e se encontra com o irmão (Assis Benevenuto). A segunda, um diálogo entre marido e mulher (Ítalo Laureano e Rejane Faria) que acabaram de se mudar para uma casa nova, foi completamente fundamentada pelas improvisações durante os ensaios. Ambas incorporam experiências muito pessoais dos integrantes do grupo, até mesmo presentes na origem de alguns objetos cênicos, o que foi revelado por eles no bate-papo após a peça: o vídeo de uma festa de casamento projetado, assim como a garrafa de champanhe que é estourada durante a peça, são do casamento do ator Ítalo com a produtora Maria Mourão; as fotos nos porta-retratos em cima do piano são do primeiro casamento de Rejane e o álbum de família é uma recordação do casamento dos pais de Marcos.

Essa exposição da proveniência de tais objetos ajuda a trazer para este texto as delicadas impressões afetivas formuladas pela estética da peça. Tudo nela é muito íntimo: o trato dos atores que recebem em cena aberta todos os espectadores, conduzindo-os aos seus lugares; a conversa que eles estabelecem com alguns durante o espetáculo e, acentuadamente, o convite aos espectadores para ler um texto, fazer as vezes de uma figura ausente ou trocar de lugar com um deles. Por meio desses e de outros artifícios, cria-se um ambiente de empatia entre todos os presentes. Associada ao fato de a plateia estar disposta em corredor, essa relação assume uma horizontalidade. Com isso, eles podem trabalhar de uma forma mais próxima no projeto de exposição das condições do humano.

As duas histórias se concentram na família e na influência dela na estruturação das formalidades particulares. Na narrativa do filho pródigo, Marcos e Assis estabelecem um código de conduta próximo ao de uma luta e o tencionam com as ciladas dos apegos à estirpe. Com luvas de boxe nas mãos, o treino desenrola-se entre diretos e jebs entrecruzados à descrição dos dilemas da educação sexual sofridos na adolescência do personagem. Parafraseado pelo ritmo de um treinamento de boxe que os atores encenam durante toda a peça, os temas da falibilidade e do adestramento se mesclam. Por um lado há uma desmistificação do projeto de progresso, com o qual o indivíduo supostamente teria sua condição de vida garantida, mas não é isso o que vemos cotidianamente.

Ou seja, o que é posto em questão é uma crença determinista de que, feito todas as premissas sociais ditas corretas, estudar ostensivamente, trabalhar de forma empenhada, pagar impostos em dia e construir uma família são suficientes para se ter boa cabeça, dinheiro no bolso e ordem no lar, contando com o mais importante de tudo, sucesso nas realizações. Esta fórmula, porém, mesmo aos que verdadeiramente a aplicam, constantemente dá sinais de engodo. Como resultado, surgem as frustrações, deixando as pessoas afoitas por descobrir a culpa e o erro, a fim de corrigi-los.

Para compreender esse jogo é mister saber que todo o projeto da formação subjetiva fundada pela modernidade vai, no período contemporâneo, perder seu caráter centralizador. Michel Foucault defende essa ideia ao concluir sua analise histórico-filosófica no livro As palavras e as coisas, dizendo que o homem é uma invenção recente na história de nosso pensamento, cujo fim talvez esteja próximo. Ainda na concepção cartesiana preservou-se a figura de Deus como fonte do saber. A moral derivada disso ditava o que deveria ser feito pelo homem com vistas ao bem maior. Na modernidade kantiana a moral volta-se para o homem, elevando a racionalidade como sua condição de possibilidade. Assim as regras são fundamentadas como alicerce nas relações humanas e uma série de acordos estabelece as bases tanto do saber, quanto do poder. Com o passar dos tempos esses acordos foram ficando velados e dogmatizados. Na peça, toda vez que o marido, personagem de Ítalo, é atingido pela recordação de que as regras são acordos, ele tomba no chão, como se tivesse recebido uma rasteira em suas certezas. Ou ainda, essa condição fica mais nomeada quando dita pelo filho pródigo sobre sua experiência de ausência: “Vi todo o mundo do alto e quis escrever para contar o que eu estava vendo toda pobreza”.

O grupo Quatroloscinco ilustra que perder, assim como ganhar, faz parte do jogo. Alimentar as ilusões de que é possível ter uma vida genial full time esconde a história de fracassos que naturalmente faz parte desse jogo, recalcando-o. Independentemente de ter conseguido conquistar um projeto de vida, a peça suscita a falibilidade do homem e como o fundamental é entender que a relevância recai sobre o jogo, não sobre o resultado. Resta seguir em frente.

Por outro lado, a questão do que se apresenta só como uma formalidade está presente tanto no texto, quando põem em reflexão os condicionamentos do contrato social, quanto na encenação, que procura deslocar certas formalidades do ritual teatral, como mais explicitamente pode ser percebido ao final da peça. Ela termina com os atores desmontando o cenário, limpando o palco com a luz de serviço acesa, se despedindo e dando recados sem deixar o público aplaudir. Na verdade, como isso ainda soa incabível para muitos espectadores, os aplausos acontecem, todavia num lugar diferente do costume, não no final da última cena, mas quando todos já estão indo embora.

foto de Núbia Abe

Critica: Expressões que traduzem impressões (por Humberto Giancristofaro)

foto de Núbia Abe
Crítica da peça Meire Love – uma tragédia lúdica, do Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza 
Autor: Humberto Giancristofaro 
Originalmente publicado no site Questão de Crítica

Meire Love – uma tragédia lúdica foi escrita pela dramaturga cearense Suzi Élida e dirigida por ela e Yuri Yamamoto. A peça trata do delicado tema da exploração sexual infantil. A história é sobre Meire, uma menina que, crendo nos búzios, tem fé de que um príncipe encantando estrangeiro vai tirá-la da miséria e levá-la para o exterior. Quando seu plano é descoberto, ela aparece morta. Sua coragem é exemplo para as colegas de rua que passam a discutir sobre as possibilidades que lhes restam, enquanto esmolam e prostituem-se pela orla de um balneário.

O Grupo Bagaceira de Teatro, de Fortaleza, realizou esta peça no II Festival de Teatro de Itajaí, como parte do projeto de desvelar a chaga social que é a prostituição infantil. Ao por em cena três homens de terno para interpretar o papel das crianças, a direção afasta-se de dois tipos de abordagem: a representativa e o discurso panfletário sobre o assunto, em prol da potência metafórica. Esta deve ser operada de forma positiva. Ou seja, valendo-se dela, a arte aufere a possibilidade de tocar o espectador naquilo que o força a pensar. Contrariamente, quando a metáfora é articulada no nível do discurso, é utilizada como artifício retórico para minimizar a situação, afastando o público do que se quer tratar.

O primeiro recurso, não-mimético, vem à tona pelas características da encenação dos atores Rafael Martins, Rogério Mesquita e Yuri Yamamoto. Eles permanecem sentados durante toda a peça em bancos sobre um tablado, com as mãos nos joelhos, cada um sob um foco de luz. A dramatização é construída exclusivamente pelas expressões faciais, pequenas inclinações do tronco para frente e para trás e pela expressão vocal que se desenha a partir da mescla da musicalidade do texto com os sotaques e a fala de rua, carregada de gírias e dialetos, como nos versos iniciais: “acunha calunga/ já é manhã!/ Bora, Bambina arigó/ que é quase agora!/ O mar não tá pra peixe/ mas meu love não demora”.

Por apresentarem, ao invés de reproduzirem os trejeitos das meninas, constroem uma relação franca com o espectador, dado que um primeiro artifício que a mente dispõe para formular essas imagens é o de lembrar o que já foi visto em outras ocasiões. Esta lembrança traz à tona a proximidade que qualquer um pode ter dessa situação. A incidência da prostituição infantil, por mais que seja tratada de forma velada socialmente, não tem nada de escondida. É cotidiano ver meninas na mesma situação andando pelas ruas das cidades e é fácil lembrar-se disso. Assim, a presença delas se afirma num nível mais íntimo, com as nuances que estão guardadas na memória de cada um. Deste modo, as cenas contam com a força de certa realidade, justamente por não lançar mão da representação. No entanto, um artifício decorre do figurino para ativar essa lembrança, por baixo dos ternos, cada ator usa um bustiê de cor néon, bem apertado, que pela falta de peito fica desengonçado, assim como acontece com as meninas de rua, impúberes. Essa simples peça de roupa é uma pontada, que é como se dissesse: “vocês sabem do que nós estamos falando”. Não é à toa que a plateia gargalhou nesse momento (talvez de nervoso).

O artifício estético de inflar sacos plásticos durante a encenação alude uma série de significados. Ao friccionarem as mãos nesses balões, os atores produzem sons de diferentes intensidades de acordo com as emoções que estão expressando – carinho, birra ou raiva são cadenciados por esses ruídos. O ato de encher esses sacos implica numa metáfora paradoxal. Em alguns pontos, ajudam a entender que o sonho dessas meninas é conseguir alguém que as beije na boca, símbolo de amor verdadeiro para elas. Mas também lembram o uso da cola de sapateiro que alucina suas mentes, amenizando a realidade em que vivem, criando uma realidade própria, na qual a capacidade de sonhar só é possível pelo entorpecimento, ou resulta dele. Nesses sacos elas sopram seus sonhos e os soltam para formar, ao final da peça, um mar de balões no proscênio.

O segundo artifício estilístico determina uma posição política. O texto da peça não é um discurso panfletário que glosa sobre os infortúnios da pedofilia e da prostituição, talvez porque, ao fazer isso, seria ineficaz, já que o discurso de repulsa à situação já está construído. No campo retórico, há uma cadeia causal que responsabiliza e justifica os motivos da existência de tal aberração social, mas que pouco alcança a realidade do problema. A peça, por sua vez, expõe como seria o dia a dia dessas meninas e alcança o público de outra forma que não pela conscientização do problema, mas por uma corporificação do problema, tocando individualmente, sem dar margem à delegação de responsabilidade a uma instituição encarregada. O corpo de cada espectador sente e reage à questão (ao sair da peça, a forma como se intelectualiza o problema após ter sido exposto a ele, às vezes para dissimulá-lo novamente, é um segundo momento que não cabe neste texto). A força que dá materialidade às impressões da peça é seu recurso metafórico.

Por esse artifício, Meire Love articula-se no distanciamento da generalização do problema. Cada menina tem suas dificuldades, suas preocupações e seus sonhos característicos. A peça não aposta na retratação de uma estrutura geral formada a partir de fragmentos escolhidos arbitrariamente, supondo que estes dão conta da realidade para formular uma doxa. No nível metafórico, as possibilidades de agenciamentos das ideias são mais livres. A relação se dá entre o corpo da peça e o corpo do espectador numa fruição. O que é corroído por esse sistema é a relação de vítima e carrasco que o discurso articula. Torna-se perceptível uma dimensão trágica da vida, para a qual se faz necessária uma ação, o que produz uma nova forma de se relacionar com o problema. Assim, a peça é capaz de estabelecer uma relação entre universos heterogêneos. 

foto de Núbia Abe

domingo, 28 de agosto de 2011

Crítica: Folhetim jovem ao estilo japonês (por Lucianno Maza)

foto de Núbia Abe
Os quadrinhos japoneses são levados ao teatro em espetáculo jovem da companhia paulista Zero Zero.

Por Lucianno Maza
Itajaí

O termo mangá se refere às populares histórias em quadrinhos japonesas, parte integrante da infância e juventude não só de jovens orientais, como, hoje, também ocidentais. Esse material, normalmente, tem como temas heróis e monstros míticos, terror e jornada heroica juvenil e rende outros produtos artísticos, como os animes - versão animada dessas histórias para a televisão, o cinema ou videogame. 

O Caderno da Morte” de Tsugumi Ōba e Takeshi Obata é originalmente uma série de mangás, posteriormente transformada em vários outros produtos, como animés. Conta a história de um jovem que encontra o caderno de capa preta de um deus da morte onde, ao escrever o nome de alguém, consegue matar essa pessoa. Inicialmente o jovem usa o caderno para livrar o mundo do mal matando apenas criminosos, mas logo isso sai de controle e ele passa a usá-lo em benefício próprio e entra num jogo de perseguição com o incógnito detetive obstinado em desvendar os misteriosos assassinatos que aterrorizam o país. 

Temas da juventude
A obra fantástica do oriente surge nessa história como um folhetim juvenil. Maniqueísta, mocinhos e vilões são bem delineados e mesmo o protagonista passa de um polo ao outro sem humanização maior. Ainda sobre o personagem principal, é bastante previsível sua trajetória heroica e falha trágica. O fardo surge logo no início da trajetória, quando o jovem diz ao pai que mataria quem fizesse algum mal a ele e, no final, é quem lhe executa o mal. Outra personagem folhetinesca é a jovem apaixonada, apresentada de forma machista como uma tola cuja única motivação é a paixão adolescente fatal.

A dramaturgia de Bruno Garcia consegue condensar o farto conteúdo em um espetáculo de pouco menos que duas horas de duração, com problemas apenas próximo ao final, quando o ritmo acelera um pouco demais. Se por um lado, citações a personalidades populares brasileiras causam ruídos, vale lembrar que nos mangás os autores também brincam com essas referências a televisão japonesa, por exemplo. Na direção, Alice K. consegue imprimir a velocidade narrativa dos quadrinhos japoneses, trabalhando os quadros fragmentados em diferentes espaços e com poucos recursos, numa condução de pouca criatividade, mas alinhada ao universo da cena. 

‘Live action’ teatral
Não é tarefa desprezível a transposição de personagens tão pitorescos para a ação cênica, mantendo suas características de escrita, sem recorrer a uma naturalização dos mesmos. Nesse sentido, Thais Brandeburgo está irrepreensível como a garota apaixonada, decodificando os elementos do exagero e erotismo incutidos nas jovens personagens femininas de mangá. São tons, expressões chorosas, gritos e pulos típicos dessa linguagem e que Brandeburgo consegue transpor para sua interpretação vivaz. Igor Amanajás também tem destaque pelo vigor físico que empresta a seu jovem e estranho detetive, enquanto Bruno Garcia se apresenta com carisma como o demônio engraçado. Rudson Marcello perde em sua interpretação algo imposta da correção do pai policial. Já Chico Lima tem desempenho insuficiente do jovem protagonista, carecendo de força dramática e consistência para dar maior verossimilhança ao jovem que passa de herói a vilão. 

A cenografia de Laura Di Marc tem grave problema na escolha de materiais, pois distorce as projeções de André Menezes, atrapalhando, inclusive, o entendimento da história - como é o caso quando as páginas do caderno da morte são projetadas e o conjunto da textura das telas com a fonte utilizada torna a leitura impossível. O figurino de Marina Baeder, Patrícia Brito e Lívia de Paula é funcional, enquanto a iluminação de Eduardo Albergaria atende modestamente as necessidades de recorte e clima.

sexta-feira, 26 de agosto de 2011

Crítica: Simpatia em espetáculo divertido (por Lucianno Maza)

foto de Núbia Abe
Rio de Janeiro marcou presença com espetáculo infantil que agrada também aos adultos nostálgicos das antigas brincadeiras

Por Lucianno Maza
Itajaí

Trava-língua é uma divertida brincadeira popular na cultura brasileira. Nesses tempos onde as brincadeiras lúdicas foram trocadas por videogames e computadores, “A Aranha Arranha a Jarra e a Jarra Arranha o Trava-Língua”, da Cia. Pop de Teatro Clássico, é uma verdadeira ode a infância criativa, onde a própria criança é seu brinquedo e usa sua voz para recriar a realidade e subverter a própria linguagem humana para, assim, aprender a mesma em todas suas possibilidades mais divertidas, estranhas e difíceis.

O espetáculo é composto por quadros educativos, onde a música tem grande importância ao redesenhar os modos comuns de fala, como é o caso do abecedário. Mimicas e adivinhações, também têm vez. Interagindo delicadamente com o público, são apresentadas situações simples, compreendidas por crianças de menor idade - principais espectadores - e que despertam também a simpatia e nostalgia dos adultos.

Jogos de Português
A dramaturgia de autoria de Demétrio Nicolau parte das brincadeiras de trava-língua para fazer uma bem humorada jornada por nosso idioma e suas idiossincrasias. Da dificuldade de falar a palavra ‘crocodilo’, que percorre todo o espetáculo, a uma versão da ‘língua do pê’, o texto final confirma um apurado trabalho de pesquisa de jogos de fala brasileiros.

Como diretor, Nicolau trabalha sobre a linguagem, a transpondo para a cena com grande inteligência. Experimentações vocais a partir da Língua Portuguesa dão o tom de sua proposta que também utiliza como recurso a extensão do corpo no espaço, que expressiona esses jogos de voz. Para tanto, outras brincadeiras eternas do repertório infantil, hoje relegadas, surgem, como bolas, cordas e bambolês. É interessante notar como o diretor consegue equilibrar um ritmo atrativo para despertar a atenção infantil com um tempo de falas e movimentos lapidados, permitindo que as passagens sejam comunicadas para as crianças com clareza.

Coloridas
As atrizes Cecília Ripoll e Aline Sampim, em total sintonia com a proposta de comunicação para crianças, executam com segurança todo o jogo estabelecido vocal e corporalmente. Sobretudo, o trabalho corporal excepcional das duas para o desenho de movimento criado por Nara Keiserman impressiona. Já na equipe técnica, o destaque é Teca Fichinski com um figurino bem cuidado e muito colorido, perfeito para o encantamento dos pequenos. Colabora para o ótimo resultado estético a maquiagem de Mona Magalhães. O cenário, assinado pelo grupo, e a iluminação do diretor atendem a montagem.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Crítica: Instantes afetivos (por Humberto Giancristofaro)

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Crítica da peça Patética da Cia. Ilustríssimos Senhores
Autor: Humberto Giancristofaro

Patética é uma peça escrita por João Ribeiro Chaves Neto, por ocasião do fim dos dias de seu cunhado, o jornalista Vladimir Herzog. A estrutura narrativa é uma paráfrase sobre as intempéries que a família Herzog enfrentou para se afastar das perseguições do regime fascista na Itália e da ditadura no Brasil. O autor escolheu um caminho poético para contar sua história e continuar resistindo à opressão. A peça, por mais que tenha ganhado em primeiro lugar no concurso de dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro de 1977, foi proibida pelo regime militar de receber o prêmio e de ser encenada. A força deste espetáculo, porém, não é apenas um mérito de seu martírio, ela é recheada de pungência teatral, o que a torna uma valiosa expressão estética do teatro brasileiro.

A Cia. Ilustríssimos Senhores resolveu montar este texto para o II Festival de Teatro Toni Cunha de Itajaí com uma nova ponderação das atitudes particulares. Um percurso que os atores tiveram que enfrentar foi de como trazer esse texto sem que sua historicidade o datasse. Pois, por mais que, vergonhosamente, ainda não conseguimos acabar com a ditadura – ela continua em patentes menos explícitas – ao usar um grito de resistência já anestesiado pelos donos do poder, a companhia corria o risco de dizer o que já foi dito. Diferente disso, esta montagem assinala uma atualização nessa insurgência. A chave da direção de Rafael Orsi de Melo foi repensar o lugar de onde o elenco se manifesta. Desta feita, o espaço topográfico das ideias formula um ambiente para que os atores tomem consciência de suas posturas, assim eles podem adotar uma concepção artística cheia de expressividade. Esse é o segredo intempestivo: fazer existir, ao invés de julgar o passado. Eles não estão lá representando personagens da história, estão expressando seus afetos puros.

A fórmula que os atores procuram erigir para a peça é de que ela não dependa da mensagem para alcançar o público, ela deve se comunicar por uma expressividade estética direta. Boa parte desses signos é emitida pelos olhares dos atores. Otávio Barwinski olha nos olhos dos espectadores e toma a fala de seu personagem Glauco (representado Herzog) como sua. Nesse ponto, não é a mensagem o que importa – se não seria uma peça moralizante – mas o esforço dos atores em oferecer uma experiência ao seu público. O que eles produzem é um acontecimento, no sentido de resgatar a potência da efemeridade do teatro. Patética é uma redescoberta do valor do instante. Ela é um instante em que o teatro acontece de forma benfazeja, por meio de seus elementos pessoais, entretanto, técnicos. 

O cenário bem resolvido tornou possível jogar com os dois planos narrativos da peça, tanto da última apresentação do Circo Albuquerque, quanto da representação da vida de Herzog, de forma a mesclar essas duas histórias num espaço coexistente e, transferindo de um para o outro, as intensidades ora melancólicas ora preocupantes. A presença da coxia em cena faz primeiramente referência ao ambiente circense, porém, guarda uma potência mais profunda de abrir o jogo ao espectador, de mostrar que quem está lá no palco são pessoas, com suas implicações e necessidades como qualquer um. Mesmo quando não estão se trocando, ficam sentados olhando as cenas, por vezes muito fortes, mas não ficam impassíveis, é possível notar as impressões que eles têm sobre sua própria peça. Isso reforça a leitura de que os atores presentificam as forças do passado em impressões verdadeiras e animam no público uma revolta pelo que quer que esteja acontecendo agora. A peça não é uma ode à justiça pelo passado, antes, é um tapa com luva de pelica pelo momento presente.